Para lá do véu.

De vez em quando gosto de entrar numa igreja, fora do horário das missas e sentar-me um pouco. Ali no silêncio desse espaço sacro, volto para dentro e falo com a Deusa. Desde criança, e nos tempos em que frequentei a catequese, sempre me fez muita confusão a parte da confissão ao padre... sempre pensei "mas eu consigo falar com Ele directamente, porque hei-de ter um intermediário?"

Não me considero uma pessoa religiosa, sim espiritual. O facto de ter nascido numa cultura judaico-cristã deixou claramente algumas marcas e creio que é por isso que, de quando em vez, gosto de me sentar por uns minutos no silêncio de uma igreja.

A minha tia avó Júlia faleceu ontem. E hoje queria ter entrado numa igreja. Tentei três, todas fechadas. 

De regresso a casa, senti-me privada de um direito, e pensei em como certos locais funcionam como pilares que nos. ajudam a chegar a outros mundos. A solução era expandir e saber que em qualquer lugar que esteja, posso me manter em silêncio e voltar para dentro e orar por ela.

A minha tia Júlia é irmã da minha avó paterna, a mais nova de quatro irmãs e um irmão. É a primeira a partir.

Em menina, era com ela, com o meu Ti Zé e com a minha avó Elvira que passava alguns dias por ano de férias na Foz do Arelho. De manhã iamos à praia, regressávamos para almoçar e depois era a minha sesta, o momento menos desejado do dia, pelo menos para mim.

Se fechar os olhos ainda me lembro do cheiro do interior do carro do meu tio, falecido já à mais anos, que gostava de pescar e que tinha na bagageira sempre algum material de pesca com aquele cheiro característico de peixe e sal. Aquilo misturado com o óleo e a gasolina criava um odor que para mim era o cheiro do carro do Ti Zé Dargalana.

Em menina ia muito a sua casa. A minha tia era Ama e tinha ao seu cuidado uma ou duas crianças. Lembro-me em particular do João Pedro, um menino da mesma idade do meu irmão, de quem a minha tia cuidou. Acabou por se tornar o melhor amigo do meu irmão.

A sua casa está-me tão presente. As escadas de madeira íngremes que chiavam ao subir, o longo corredor que ia da sala até ao quarto da minha prima e à cozinha, a salinha da costura/brincadeira/etc.,  a cozinha com um lavatório e pia de pedra antigos e as janelas que davam para o pátio interior decorado com árvores. O que eu gostava de me empoleirar e espreitar por aquelas janelas.

Lembro-me do cheiro de feijão verde cozido com ovos e batatas. Lembro-me da sensação de conforto e aconchego da sua casa.

Já com os meus 11,12 anos foi no seu sofá onde estive deitada cheia de febre e dores, antes de ir ao médico e ser encaminhada para o hospital para me ser retirado o apêndice.

Depois aconteceram coisas que infelizmente acontecem nas famílias. Adultos que se chateiam entre si, uns tomam parte de outros, uns deixam de falar com outros e as pessoas acabam por se afastar. Fossos que se abrem dentro das famílias que por vezes nem o tempo ajuda a sanar. 

Eu acabei por sair de Santarém e nos meus breves regressos, só ocasionalmente via a minha tia. Visitava-a na sua casa ou encontravam-nos nas ruas de comércio da cidade e na Bijou, onde ela ia sempre beber o seu cafézinho. 

Hoje escrevo porque acredito que são as minhas memórias que mantêm a minha tia em mim, que honram o carinho que lhe tinha e a mulher que ela era para mim. Uma mulher simples, acolhedora e bondosa que me chamava "a minha Aninhas".

Fecho os olhos e estou na sua casa. Consigo me lembrar de pormenores subtis como os móveis que tinha no corredor, o louceiro da sala, a mesa redonda na salinha pequena, as molduras com as fotografias das crianças de quem cuidou e também as dos netos e família mais próxima, a janela redonda no quarto da minha prima Lurdes. 

As casas marcam-nos porque são extensões de quem lá vive e das memórias que temos com os seus habitantes.

Doí-me o coração saber que minha tia passou estes últimos meses em sofrimento, num lar, onde só via a filha uma vez por semana através de um vidro. Sem a possibilidade de um abraço, um carinho, um mimo...

Não consegui aceder uma vela numa igreja e orar por ela. Consigo partilhar contigo que me lês um bocadinho dela em mim. Consigo acender uma vela na minha casa por ela. Consigo fazer um encaminhamento de Almas e apoiar a sua transição para o outro lado do véu. Para que a tristeza e solidão que certamente lhe corroeram  o coração, possam ser transmutados e que ela possa, em paz e harmonia, continuar a sua viagem até às estrelas. 

Com diz Caroline Miss, não há ninguém que tenha partido antes de nós que não voltemos a encontrar - essa é uma promessa Divina. "Fomos concebidos para descansar no conforto e poder dessa verdade sagrada".

Desejo-te uma tranquila Viagem tia Júlia, que sejas acolhida em Amor por quem já está ai desse lado à tua espera.

 

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Organizadora Profissional

Sou a Margarida, Doula das Casas, Especialista em Organização de Espaços residenciais e empresariais. A Acredito que ao organizar fora estamos também a organizar dentro; que ao deixarmos ir o que já não serve, estamos a abrir espaço para o novo; que ao respirar e alongar, deixamos que a nossa casa e o nosso corpo se liberte do que bloqueia e que tudo passe a ser mais fluído…