Caminho, sapatos, julgamentos…

 

"Antes de julgar a minha vida ou o meu carácter...calça os meus sapatos e percorre o caminho  que eu percorri, vive as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorre os anos que percorri, tropeça onde eu tropecei e levanta-te assim como eu fiz. E então, só aí poderás julgar."

Clarisse Lispector


Imagino que conheces este texto. Começo com ele porque é de sapatos que este texto vai tratar.


É relativamente fácil deixar que os julgamentos de outrem, por vezes, possam toldar o meu sentir, especialmente se são feitos por quem nos é próximo. E ainda doem mais quando sou eu a fazê-los sobre mim mesma. Não devia ter feito, devia ter feito; não disse, devia ter dito; não sou capaz; não é para mim; sou mesmo parva...

Tem sido um percurso, aquele em que tenho vindo a aprender a ser mais gentil comigo mesma, a deixar de parte os julgamentos de escolhas, acções e umas quantas não decisões. Quando não decidi estive também a decidir, só que dei ao outro o ónus dessa decisão e perdi o meu poder pessoal.

Quero partilhar contigo uma vivência que me tocou muito e que me faz sentido nesta fase de transição para o 2020 que se aproxima.

Caminho e sapatos

Fiz recentemente uma viagem e como "boa" minimalista que se preze, optei por levar só 4 pares de calçado: umas sapatilhas para a viagem (passei de um país frio para um quente), umas sandálias, umas "havaianas" de marca branca que gentilmente me ofereceram num SPA onde me mimei à alguns meses atrás, e uns sapatos de salto para as saídas nocturnas! Sim, levei tudo numa só  mala de mão (com a excepção do calçado que levava nos pés!).

Todos eles cumpriram muito bem as suas funções, resistindo a todas as provas pelas quais os fazia atravessar.... desde andar pela floresta, dançar, calcorrear pedras e areais, caminhar por horas sem destino pelas ruas das cidades, umas delas limpas, outras nem por isso...

Um dia enquanto caminhava com as chinelas, a borracha do dedão deu em teimar em sair, o que me impedia de acompanhar o ritmo do grupo. Teimosa, andei ali numa luta com as sandálias por mais uns quantos metros. A pobre da "havaiana de marca branca" bradava por descanso. Finalmente dei a mão à palmatória e percebi que tinha de trocar de calçado. Assim que o fiz regressei ao ritmo do grupo.

Agora carregar as chinelas, devidamente decoradas com alguma lama, tornava-se incomodativo e resolvi deixá-las à beira de uma casa de madeira até ao meu regresso, uma vez que iria voltar pelo mesmo caminho. Claro que o tempo em que mediou o meu ir e o meu voltar, foi mais um salto quântico do que algumas horas marcadas no relógio, e ao regressar já não era a mesma que tinha ido.

Chinelas e sapatilhas

Olhei para as chinelas e senti em mim todo o caminho feito e senti que tinha chegado o momento de descalçar os meus sapatos e trocar por calçado novo.

Reverberou com tanta intensidade que vieram até mim os ténis que secavam no meu quarto, depois de me terem acompanhado através de uma tempestade onde tive de atravessar um rio num barquinho de madeira, caminhar uns bons quilómetros numa praia, e atravessar uma zona inundada da povoação em que a água me chegava acima dos joelhos. Tudo isto debaixo de chuva, até chegar ao meu quarto e tomar um belo banho quente.

Ficou tudo muito claro para mim. Existem momentos na vida em que podemos escolher cortar com o caminho que fizemos, em que podemos simplesmente decidir mudar de direcção, simplesmente reconhecendo e agradecendo por tudo o que nos presenteou e simplesmente deixar ir.

Assim o fiz. Descalcei-os, agradeci e deixei-os seguir o seu caminho, tomando a decisão de calçar outros sapatos que me levarão por outros caminhos.

Na viagem de regresso calçei as sandálias, na mala só mesmo os sapatos de salto para os devolver à sua legitima proprietária.

Nestas últimas horas de 2019, olha para os teus sapatos, ou para a tua roupa, ou para os livros, ou para os recipientes de plástico na tua cozinha, ou para a gaveta das memórias e vê o que podes deixar ir com gratidão e amor.

Abre-te também da mesma maneira, com amor e gratidão ao novo que está ai ao virar da esquina para ti em 2020...

Abraço profundo <3

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Organizadora Profissional

Sou a Margarida, Doula das Casas, Especialista em Organização de Espaços residenciais e empresariais. A Acredito que ao organizar fora estamos também a organizar dentro; que ao deixarmos ir o que já não serve, estamos a abrir espaço para o novo; que ao respirar e alongar, deixamos que a nossa casa e o nosso corpo se liberte do que bloqueia e que tudo passe a ser mais fluído…